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Sexualidade feminina: libertina ou recatada?

Não é novidade pra ninguém a repressão sobre os corpos femininos causada pelo discurso hegemônico da igreja cristã. Temos uma teologia misógina recheada de proibições e orientações “bíblicas” sobre a necessidade de ser uma mulher pura e virtuosa, que se guarda para o momento e o homem certo. Mas muito me espanta o quanto esse discurso, em plena era da informação, ainda consegue aprisionar mulheres de todas as cores, idades, classes sociais e níveis de instrução, mostrando que o poder de persuasão da religião não pode jamais ser subestimado.

Algumas histórias se repetem com tanta frequência que é impossível que você, sendo cristã, não conheça pelo menos uma delas: mulheres fortes e bem sucedidas sendo obrigadas a encenar uma personalidade recatada e passiva dentro das igrejas para corresponder ao ideal de mulher que tanto se prega ali; adolescentes reprimindo sua sexualidade e se sentindo culpadas pelo despertar sexual que é próprio da idade; mulheres jovens casando precocemente tão somente para poder exercer uma certa “liberdade” sexual, que só lhe é permitida, com muitos limites, dentro do casamento; mulheres casadas infelizes sexualmente com seus parceiros, mas que não ousam demonstrar suas insatisfações para não serem taxada por eles como “pervertidas” ou “vadias”; mulheres que suportam um casamento falido, abusivo ou até mesmo violento apenas para manter um parceiro sexual, já que fora dele não lhe é permitida uma vida sexual ativa; mulheres divorciadas ou viúvas que carregam o fardo da abstinência porque aprenderam que só podem voltar a ser sexualmente ativas se – e somente se – um dia se casarem de novo; mulheres maduras e solteiras que sublimam sua sexualidade porque nunca casaram e, portanto, não receberam o aval para desfrutá-la. Quem não conhece um ou vários casos desses? E quando olhamos para os homens à nossa volta, parecem viver em outro mundo: quantos deles nós conhecemos que enfrentam dilemas parecidos?

O que eu vou trazer nesse texto não é nenhuma novidade pra muita gente, mas dentro das igrejas é um assunto altamente proibido, portanto, um número inimaginável de mulheres cristãs não detém esse conhecimento – e por isso mesmo sua discussão se faz cada dia mais urgente: nós não somos essas fadas assexuadas e com desejos perfeitamente controláveis que a igreja nos obriga a acreditar que somos. Não, não foi assim que Deus nos fez.

Simone de Beauvoir, em sua obra clássica O Segundo Sexo, explica detalhadamente, com argumentos biológicos, científicos, históricos e antropológicos que não se nasce mulher, torna-se. Essa máxima que ficou tão famosa ainda é pouco compreendida, mas o que Beauvoir quis dizer é que não é exclusivamente a biologia quem determina quem e como somos, mas a cultura estabelecida no nosso entorno contribui de forma significativa para nos tornarmos a pessoa que somos. O conceito de feminilidade muda a cada era, de cultura pra cultura, e ser mulher no Ocidente, por exemplo, não é a mesma coisa que ser mulher no Oriente. Logo, muita coisa que é atribuída como “inata” ao sexo feminino na verdade é produto de uma construção cultural muito bem sedimentada, que nos faz acreditar que toda mulher é de tal forma porque o sexo feminino é assim. Mas não é. Um exemplo de característica muito frequentemente atribuída a nós, mulheres, e que não passa de uma grande mentira, é o famigerado desejo sexual contido, tão bem trabalhado pelas igrejas para nos controlar e limitar enquanto corpos potentes e sexuados.


 

Desmascarando a mentira


 

Naomi Wolf, no livro Promiscuidades – a luta secreta para ser mulher, explica muito bem, por meio de um rico apanhado histórico, que a crença de que as mulheres desejam o sexo menos do que os homens é algo bem recente: tem pouco mais de dois séculos de idade (WOLF, 1998, p. 197). Ela mostra como as mais diferentes culturas, em diferentes épocas, entendiam a sexualidade feminina: ora como algo a ser reverenciado, ora como algo exacerbado e perigoso para o sexo masculino, mas sempre com a ideia de que as mulheres tinham uma sexualidade e uma libido mais aflorada que os homens. A própria igreja cristã, durante muito tempo, corroborou com essa ideia:


 

“No início do cristianismo, a igreja se baseou no fortalecimento do controle sobre as mulheres. […] Aos olhos da igreja, era necessária a proibição mais severa para as mulheres ‘para punir um excesso de desejo [libido], maior nas mulheres do que nos homens’. […] Como as mulheres eram consideradas mais lascivas, era preciso que fossem controladas com maior atenção.” (WOLF, 1998, p. 122)


 

Um grande exemplo do controle que as igrejas exerciam sobre os corpos femininos considerados pecaminosos foi a inquisição, que acusava de bruxas e queimava vivas as mulheres que, dentre outras coisas, ousavam viver sua sexualidade de forma ‘não convencional’. Os cintos de castidade, tão utilizados por tanto tempo, também são uma prova de que éramos, sim, consideradas uma ameaça por causa do nosso sexo. Mas em algum momento da história essa narrativa precisou ser mudada. Naomi explica quando isso aconteceu e porquê:


 

“A ideia de que a sexualidade feminina é menos intensa do que a masculina remonta ao final do século XVIII. Com a ascensão da Revolução Industrial, a Europa e os Estados Unidos articulam uma nova visão: as mulheres deixaram de ser o sexo mais animalesco, para se tornarem o mais angelical; seus desejos voltados não para a luxúria, mas para o doce afeto e a domesticidade. Cada vez mais, elas eram vistas como tão diferentes dos homens, em termos sexuais, a ponto de se tornarem o oposto do homem.

[…] Linda Gordon, em ‘Woman’s Body, Woman’s Rigth’ [Corpo da Mulher, Direito da Mulher], defende a tese de que a sexualidade passou a ser uma ameaça ao desenvolvimento da ‘estrutura do caráter capitalista’, que exigia que as pessoas almejassem o futuro e deixassem a satisfação pra depois.” (grifos nossos) (WOLF, 1998, p. 200 e 201)


 

Deu pra entender que o conceito sobre a natureza sexual das mulheres muda de acordo com as conveniências de quem comanda o jogo do poder? Quase que de uma hora pra outra, deixamos de ser lascivas e hipersexualizadas para nos tornarmos seres de natureza casta e controlada. E é claro que a igreja se utilizou desse novo conceito para continuar nos reprimindo. Naomi descreve tal mudança de pensamento de um jeito que estamos muito acostumadas a ouvir nas igrejas:


 

“A nova ideologia alegava que, biologicamente, as mulheres eram muito mais bem equipadas do que os homens para controlar o ímpeto impulsivo e carnal do desejo. No século XIX, o impulso sexual passou a ser atribuído ao universo masculino, e as teorias começaram a negar que ele sequer existisse biologicamente nas mulheres.” (WOLF, 1998, p. 202)


 

Quem nunca ouviu uma pregação ou estudo de grupo falando exatamente isso? A igreja joga sobre nossos ombros a responsabilidade de manter a santidade no namoro, o peso da abstinência rigorosamente vigiada antes do casamento e depois de um divórcio, a culpa pelos desejos que se manifestam “fora de hora”, tudo sob a alegação de que “a mulher tem uma natureza menos sexual do que o homem, portanto, é capaz de controlar a si mesma e ao seu companheiro, caso tenha”.

Já o homem, não. É visto como um animal instintivo, que precisa de sexo e não consegue controlar seus impulsos. E assim se legitima e se desculpa a vida sexual “fora das regras” que o homem possa vir a ter (seja vivenciando o sexo fora do casamento, seja adulterando ou até mesmo se masturbando – ato proibido e impensável para as mulheres, que “não precisam” disso). É assim que se monta um cenário perfeito para dominação, vigilância e controle dos corpos femininos. Somos alienadas de nós mesmas desde a mais tenra idade, quando começamos a aprender lá no grupo de adolescentes que devemos nos manter puras até o casamento (num conceito de pureza que chega ao fanatismo, muitas vezes) e que a nossa sexualidade não apenas depende, mas também  é despertada pelo homem, dentro do relacionamento conjugal – talvez essa seja a maior e mais castradora das mentiras.

Definitivamente, nós não somos assexuadas, não temos uma sexualidade “mais fraca” nem tampouco precisamos de um homem para despertar algo que desperta naturalmente, com os hormônios e os milhares de estímulos que recebemos numa sociedade altamente erotizada. Somos, sim, constrangidas a não admitir nossos desejos e impulsos, sob o risco de sermos taxadas de vadias e rotuladas como “aquela que não serve pra casar”. Somos coagidas a sublimar o que Deus nos deu para ser usufruído e ameaçadas de perder o respeito da sociedade se ousarmos viver o que temos de mais natural e (por que não?) instintivo, que é a nossa sexualidade. Esse discurso repressor pode até funcionar pelo medo, mas cada uma de nós sabe o que sente, mesmo que não tenha coragem de falar. Por trás dessa ideologia perversa, que autoriza a livre sexualidade masculina, mas demoniza e vulgariza a feminina, está o prazer (quase) secreto dos homens de subjugar nossos corpos e desejos, como uma espécie de inveja, garantindo, assim, que o sexo seja um território de domínio exclusivamente masculino, no qual eles têm todo conhecimento, poder e liberdade. Desta forma, viramos um bibelô na mão deles. E toda a nossa potência sexual fica sub-aproveitada, porque ela, de alguma forma, os ameaça.

A partir de agora, eu desafio você, mulher, a refletir: a quem serve a sua abstinência e/ou repressão sexual? A quem interessa que você tenha vergonha do seu corpo, dos seus desejos e impulsos? Você que vive lutando contra a tentação e pedindo a Deus para “mortificar a carne”, seja porque é solteira, divorciada ou viúva, escolheu esse caminho por convicção pessoal ou por pressão e medo? Que efeitos isso traz para a manutenção do status quo?

Concluo com uma provocação de Naomi Wolf, da obra aqui citada: “Se a sexualidade das mulheres não fosse de fato subversiva sob algum aspecto, porque aqueles que procuraram controlar as mulheres tiveram de se esforçar tanto e por tanto tempo?” (WOLF, 1998, p. 302)

Lembrando sempre: viver a própria sexualidade sem culpas não significa ser irresponsável e negligente com o próprio corpo. Enquanto cristãs e cristãos, temos o compromisso de zelar por ele, pela nossa saúde física, emocional, mental e espiritual. A chave está no equilíbrio.



 

 

*Uma obra que ajuda bastante a desconstruir a mentalidade assexuada que a igreja constrói nas mulheres é o livro Vagina – uma biografia, também da autora feminista Naomi Wolf.



 

Referências:

WOLF, Naomi. Promiscuidades – a luta secreta para ser mulher. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo – Fatos e Mitos (vol. 1). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.



1 Comentário

  1. Ketlyn Kuhlemann disse:

    Muito obrigada pela discussão aberta no texto, muito relevante e elucidadora.
    Segundo o que venho estudando, o sexo é o maior ato de adoração ao Deus criador e, por isso, mais atacado pelo inimigo das almas:

    “Não podemos empreender a leitura de Cântico dos Cânticos sem antes compreender duas coisas. Primeira: o livro contém requintados poemas de amor. Segunda: os poemas são de conteúdo explicitamente sexual. […] Alguns eliminariam o sexo ao falar de amor, supondo que o estão tornando mais santo. Outros, quando pensam em sexo, não consideram o amor.” Em um mundo que parece se especializar no sexo sem amor, Deus reservou um livro inteiro da Sua Palavra para tratar de amor e sexo (além de muitos outros textos ao longo da Bíblia). Cântico dos Cânticos retrata o amor como “as labaredas [vindas] de Yah [abreviação de Yahweh, o nome próprio de Deus]” (8:6, tradução literal).
    Esse poema bíblico “é uma testemunha convincente de que homens e mulheres foram criados física, emocional e espiritualmente para viver em amor. […] Apesar de nossas sórdidas falhas em amar, vemos aqui a razão de sermos criados, [vemos] que Deus planejou o êxtase e a satisfação para nós, celebrados na poesia de Cântico dos Cânticos”.

    Lembrando que esse Amor é um princípio de ação, e não um sentimento, um princípio de ação que nos leva ao verdadeiro Altruísmo, nos libertando do Egoísmo que destrói as almas.

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