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Quem diria: Deus se preocupa com gays na TV!

Na Assembleia Legislativa de São Paulo, a deputada Marta Costa deu entrada, em regime de urgência, num projeto de lei que proíbe a presença de pessoas LGBTs em propagandas no estado. A votação do projeto seria ontem, mas acabou sendo adiada pela segunda vez, sem data prevista para entrar em pauta. Não preciso dizer que essa iniciativa tem recebido uma enxurrada de críticas, né?

O Brasil vive há mais de um ano um estado de calamidade diante da pandemia de coronavírus. Todos os dias nos deparamos com notícias estarrecedoras sobre aumento do número de mortes, falta de leitos de UTIs, de equipamentos, de medicamentos, falta de vacinas e mais um milhão de aberrações que não deveriam estar acontecendo se o nosso governo assumisse de forma séria a condução da crise sanitária. Aí vem uma deputada e propõe com regime de urgência o banimento da população LGBTQIA+ das peças publicitárias, porque isso, sim, parece uma ameaça grave que precisa ser combatida neste momento, né? Mais de 380 mil mortes por coronavírus numa pandemia não são nada diante da terrível “ideologia de gênero” que aterroriza as famílias de bem.

Mas não é só o caráter de urgência que chama a atenção nesse projeto. A proposta de apagar a comunidade LGBTQIA+ da publicidade sob a alegação de que a sua presença traz “desconforto emocional” para as famílias é de um preconceito e atraso imensuráveis, com a tentativa de usar a lei para respaldar a prática criminosa de homofobia.

O texto, redigido de forma pouco clara, alega que o objetivo é “proibir a publicidade através de qualquer veículo de comunicação e mídia de material que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças no Estado de São Paulo” (grifo meu). É estranho porque não se faz publicidade com teor sexual voltada para crianças e a publicidade infantil no Brasil é uma prática ilegal e abusiva, de modo que há muito tempo não se vê mais campanhas direcionadas para esse público. O quê exatamente esse projeto quer inibir? Provavelmente as crianças estão sendo usadas aí como subterfúgio para fugir das acusações de homofobia sob o argumento de defesa da infância…

Mas para entender melhor o que está por trás desse projeto, é necessário fazer uma pergunta muito simples: quem é a deputada Marta Costa?


Por trás da “fé”, um projeto político


Marta Costa é evangélica e filha de pastor. Seu pai é ninguém menos do que José Wellington Bezerra da Costa, líder de grande expressividade no meio evangélico que foi presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil de 1988 a 2017. Ele costuma transitar no meio político: apoiou o ex-presidente Michel Temmer na época do impeachmant de Dilma Roussef e tem relação com nomes de peso, como o deputado Marco Feliciano e o atual presidente, Jair Bolsonaro – que inclusive esteve presente no seu último aniversário.

Marta Costa, por sua vez, tem mais de vinte anos de atuação política como representante da Assembleia de Deus. Já foi vereadora de São Paulo por três mandatos, suplente do Senador Aloysio Nunes e atualmente exerce seu segundo mandato de Deputada Estadual. Portanto, trata-se de mais um caso explícito de político que chega ao poder por meio da religião.

A bancada evangélica, em todas as esferas de poder, tem se mostrado especialista em usar e abusar da religiosidade para se perpetuar nos cargos. Mesmo sendo o Brasil um estado laico, muitos políticos se elegem com propostas religiosas para toda uma população, o que configura grave desrespeito à laicidade do estado e à liberdade de crença dos cidadãos. Trazer para a vida pública e querer transformar opiniões e valores que são específicos de um grupo religioso em leis é uma tática que tem dado muito certo junto à conservadora e hipócrita população brasileira, que defende a família, a moral e os bons costumes, mas bate recordes em homicídios, violência contra a mulher, abuso sexual infantil e outras atrocidades que deveriam ser exceção numa nação que se diz “cristã”.

Portanto, o projeto de lei trazido pela referida deputada nada mais é do que uma manutenção de eleitorado, ou seja, uma forma de mostrar serviço aos seus eleitores e lembrá-los de que ela está, sim, trabalhando para defender os ‘valores cristãos’ que eles tanto prezam – e a homofobia é uma bandeira muito cara a esse segmento. Não importa se o momento é inadequado, se o projeto é abertamente discriminatório ou se não tem um objeto bem definido: o que importa é ter visibilidade enquanto alguém que defende a família da imaginária ideologia de gênero, mesmo que numa ação totalmente irrelevante, criminosa e que, neste momento, traz para o debate uma pauta que só ocupa as mentes de gente muito egoísta, preconceituosa e medíocre. Duvido que Jesus compactuasse com essa tática suja de manutenção de poder e muito menos com o discurso de ódio que ela traz consigo, que atinge em cheio uma população já vulnerável e tão massacrada que é a comunidade LGBTQIA+.

Nós, cristãs e cristãos, precisamos ficar atentos para o fato de que a pauta de costumes que a igreja tanto valoriza é, na realidade, um grande engodo: agrada os crentes de religiosidade vazia, enche os bolsos dos políticos ambiciosos, mas não nos tira da nossa situação de miséria, violência e corrupção. É a melhor forma de um político fingir que está trabalhando sem fazer absolutamente nada para melhorar a nossa realidade enquanto nação. Quando vamos acordar pra isso e perceber que estamos sendo usados?

A igreja evangélica tem errado muito feio ao permitir que esse tipo de oportunismo se crie em seu seio. Pessoas que usam o nome de Deus e distorcem o Evangelho para chegar ao poder são um exemplo explícito de que não conhecem o Deus que tanto evocam e deveriam ser facilmente reconhecidas pelos cristãos como falsos profetas que são. Essa gente não sabe o que é amor ao próximo, não entende a lógica de Jesus de se distanciar do poder e ficar próximo dos perseguidos pelos poderosos. Jesus nunca quis participar dos banquetes reais, ele dividia pães e peixes com gente pobre e pecadora. Se Ele estivesse entre nós hoje, duvido que estaria num plenário defendendo mais discriminação, mais ódio e mais intolerância em nome do Pai. Mas não me surpreenderia se O encontrasse caminhando lado a lado com travestis, gays, lésbicas e transexuais, porque esse era o tipo de gente por quem Ele se interessava e demonstrava o amor de Deus. Estamos fazendo tudo ao contrário!

Com sua estratégia de insistir numa pauta de costumes inútil e preconceituosa mesmo no momento de dor e morte que estamos vivendo, a deputada Marta Costa e toda a bancada evangélica só mostram o quão mesquinho e pequeno é o deus a quem eles servem. Um deus que se parece muito com eles próprios, diga-se de passagem. Será mesmo fé ou uma espécie de idolatria narcisista?

Se Deus fosse mesmo esse cara que se preocupa com a presença de LGBTs na TV enquanto temos milhares de problemas mais graves no mundo, seria melhor sermos ateus. Ainda bem que Ele não é!




3 Comentários

  1. Carlos disse:

    Texto sem retoques.

  2. Luise disse:

    Descobri seu blog por acaso, sou redatora e fazendo uma pesquisa cheguei aqui. Não sou evangélica, mais estou tão, mais tão encantada com seu trabalho que só queria lhe parabenizar ♥️

  3. Fernando disse:

    O ruim desse texto é que ele acaba. Belíssima, importante e necessária reflexão, Isa. Obrigado por falar sobre isso.

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