O cristianismo androcêntrico no qual todas nós fomos criadas nos fez conhecer e admirar quase que exclusivamente personagens bíblicos masculinos, considerando-os como referenciais de vida e fé. Não há nada de errado em se inspirar na vida de Pedro, Paulo, Moisés ou Abraão, mas a história do cristianismo não foi feita só por homens. Mulheres fortes, ousadas e transgressoras também ajudaram a espalhar e consolidar a fé cristã pelo mundo, sendo, em muitos momentos, protagonistas. No entanto, seus nomes foram omitidos e suas presenças diminuídas nas páginas da Bíblia oficial.
Maria Madalena foi muito maior do que nos contam os quatro evangelhos; Isabel e Maria foram muito mais do que ventres que geraram João Batista e Jesus; Agar não foi apenas uma escrava que gerou um filho bastardo e que o usava para provocar sua senhora; Rute foi bem mais que uma nora bondosa que decidiu não abandonar sua sogra. Todas as mulheres mencionadas na Bíblia são muito maiores do que está descrito ali. No entanto, suas histórias, seus feitos e, sobretudo, seu poder de influenciar outras pessoas (especialmente outras mulheres) não podiam ser mostrados, sob o risco de desestruturar o grande alicerce social, cultural, político, econômico e religioso daquelas sociedades: o patriarcado.
Apenas lendo a Bíblia, não temos como saber a real contribuição das mulheres no Antigo e no Novo Testamento porque isso não foi registrado ali. Em conformidade com a mentalidade vigente à época em que os livros do cânon foram escritos, as experiências masculinas foram privilegiadas, os nomes masculinos foram devidamente registrados e o protagonismo masculino foi garantido. Mulheres não tinham importância e nem podiam ter, já que o patriarcado estabelecia que a família e a sociedade eram “naturalmente” lideradas por homens – às mulheres cabiam a obediência, a reprodução, os cuidados e os serviços. Fomos silenciadas, apagadas, descredibilizadas e até esquecidas da história do cristianismo.
No entanto, mesmo carregada de ideologias patriarcais e androcêntricas, a Bíblia nos dá algumas pistas, que a teologia feminista utiliza para descortinar a história por trás daqueles nomes ou figuras femininas. Uma das ferramentas utilizadas para isso é a hermenêutica feminista de libertação. Hermenêutica é a ciência que se encarrega da interpretação da Bíblia em sentido amplo, analisando os textos dentro do contexto em que foram escritos e levando em conta o lugar de fala de cada autor. A hermenêutica feminista de libertação tem como desafio fazer essa interpretação dando visibilidade às “histórias e corpos de mulheres e outras pessoas oprimidas presentes no texto” (REIMER, 2005), isto é, revelando as presenças escondidas pela ideologia dominante. Além disso, ela também se propõe a descobrir “novas maneiras de conhecer e relacionar-se com Deus, resgatando outras imagens para o Sagrado, também contidas em textos bíblicos” (REIMER, 2005). Com a ajuda da hermenêutica feminista de libertação, é possível não só conhecer melhor as histórias que foram ocultadas e que dialogam diretamente com as minorias (mulheres, crianças, pessoas empobrecidas etc.) como também conhecer a face feminina de Deus, cuja manifestação também foi reprimida pelo discurso oficial (a quem interessava muito mais criar um Deus-Pai para reforçar o sistema patriarcal).
Para quem não sabe e para os que ainda insistem em negar, quero reafirmar que temos, sim, referências bíblicas de mulheres tão fortes (ou mais) quanto os homens, cujas histórias nos inspiram e nos ensinam muito sobre fé a partir das nossas vivências femininas. No entanto, precisamos buscar essas histórias não somente nas páginas da Bíblia (já que lá elas não estão postas de forma explícita), mas também em outras fontes complementares – e a teologia feminista é um excelente caminho para encontrá-las. A nossa relação com o sagrado é construída de uma maneira totalmente diferente e não somos obrigadas a nos adequar ao modelo de fé masculina que nos é imposto. Os testemunhos de mulheres como Raabe, Agar, Ester e Maria falam diretamente ao nosso coração porque elas enfrentaram as mesmas dificuldades que enfrentamos hoje, dificuldades pelas quais só as mulheres passam. Elas são exemplos da ousadia que o patriarcado não quer que a gente tenha, e por isso nunca receberam a devida importância.
Além das histórias femininas, na Bíblia também está oculta uma outra face de Deus. Desde a mais tenra infância aprendemos que Deus é homem, Pai e Senhor, aquele que é autoridade, soberania, vigilância e castigo. Um Deus que fica distante em seu patamar de divindade, para o qual clamamos por misericórdia e aguardamos seu favor. Esse Deus é muito parecido com o pai autoritário, o patrão, o senhor de engenho, o rei e outras figuras masculinas que legitimaram o patriarcado ao longo da história – logo, usam Deus também com essa finalidade. Porém, a teologia feminista e a hermenêutica feminista de libertação nos convidam a conhecer uma Deusa-Mãe e suas manifestações femininas – que também foram minimizadas na Bíblia, mas estão lá porque não puderam ser apagadas.
Precisamos nos conectar com uma divindade que conhece bem as particularidades dos nossos corpos, porque Ela também tem seios para alimentar, braços para acolher, ouvidos atentos para escutar, fertilidade para gerar vida… uma divindade que se relaciona de verdade conosco, que sai do seu panteão e vem pro nosso lado, viver nosso cotidiano, chorar nossas dores, carregar nosso fardo. Ela é a Sabedoria, a Ruah Divina, o sopro que nos dá fôlego, ânimo, vida… uma Deusa presente, acessível e amorosa, que rompe com a estrutura dominante e nos traz um cristianismo humano, sem compromisso algum com o poder, a política ou o capital – apenas com a vida! Que a Ruah sopre em nossas vidas e nos impulsione a buscar mais sobre a nossa história, a nossa ancestralidade e o nosso verdadeiro sagrado.
*Para você que deseja saber mais sobre a hermenêutica feminista de libertação e desenvolver um olhar mais apurado para ler a Bíblia, sugiro o livro Grava-me como selo sobre teu coração: Teologia bíblica feminista, de Ivoni Richter Reimer. A linguagem é bem acessível e a leitura é profunda e libertadora!