Há muitos anos venho me questionando sobre o modo de fazer missões da maioria das igrejas evangélicas. Fico me perguntando se há eficiência num modelo de evangelização que parte do pressuposto de que nós, crentes, somos uma civilização superior e temos muito que ensinar aos outros povos. Com frequência a igreja se coloca na posição do “branco salvador” que vai levar redenção às pessoas, desconsiderando seu contexto, sua cultura e sua forma de ver a vida. Negros e índios são os principais alvos desse tipo de evangelismo que desumaniza o outro.
Quando a igreja prega que precisa ir à África ou evangelizar tribos indígenas distantes, ela usa a mesma lógica do colonizador. Não que não se possa levar o Evangelho para esses lugares, mas a forma como a evangelização é feita costuma ser, no mínimo, desrespeitosa com as vidas que estão ali. A igreja chega querendo acabar com os hábitos e costumes, querendo apagar culturas, impor valores e regras que são totalmente estranhos àquelas comunidades. Quando o evangelismo acontece dessa forma, estamos fazendo o mesmo que os portugueses fizeram quando chegaram ao Brasil: exterminando um povo, literal ou simbolicamente.
O processo de apagamento da cultura e extermínio dos povos indígenas no Brasil começou com a igreja católica em suas expedições missionárias. Diziam que o objetivo era catequizar os índios e salvar suas almas. Mas a verdadeira intenção por trás disso, todos nós sabemos, era docilizar os corpos indígenas para o trabalho escravo e dominá-los, a fim de que não atrapalhassem os negócios da coroa portuguesa no novo território. Se para isso fosse necessário matar, eles matariam, como de fato o fizeram. A religião foi usada deliberadamente como um pretexto e serviu de fachada para esconder e justificar as atrocidades cometidas contra os povos indígenas.
No entanto, esse passado vergonhoso não ficou para trás. Continuamos reproduzindo essa lógica nas nossas missões evangelísticas, quando invadimos as tribos indígenas com soluções para problemas que não existiam ali até então. Demonizamos seus rituais religiosos e seus costumes, classificamos como pecados práticas que para eles são culturais, impomos nossas vestimentas, nossa visão de mundo e nosso “deus”. A chegada da igreja em muitas tribos representa uma violência e nós não nos damos conta disso porque temos a arrogância de quem se acha representante oficial de Deus na Terra. Definitivamente, não é assim que se faz missões. Esse deus não cativa ninguém, ele apenas oprime e destroi. Esse não é o Deus de amor no qual cremos.
Quando insistimos nesse modelo de evangelização que inferioriza os povos indígenas e pretende acabar com tudo que eles já produziram e vivenciaram até aqui, estamos contribuindo diretamente para o seu extermínio. Estamos, mais uma vez, usando a religião como pretexto de dominação e servindo aos interesses de empresários da fé, que têm como objetivo expandir suas igrejas para ampliar sua base de dominados, sua influência política e sua arrecadação financeira. Mas não só isso: estamos também abrindo as portas para todo tipo de exploração e mazela que possam vir depois, pois destruir uma cultura é o caminho mais fácil para fragilizar os indivíduos, acabar com sua identidade, com suas referências e deixá-los vulneráveis a toda sorte de manipulação e violência. O que para muitos parece ser um trabalho bem intencionado, para os índios é uma questão de morte das suas origens e tradições e, portanto, morte das suas existências, considerando também todos os problemas que o homem branco leva para as tribos (doenças, alcoolismo, estupros, desmatamento etc.). Infelizmente, ainda que de forma não intencional, a igreja tem contribuído para isso. Só que não cabe hoje, depois de mais de 500 anos de assassinato dos povos indígenas, alegar desconhecimento, inocência ou boas intenções. Enquanto igreja, somos muito arrogantes e achamos que só nós temos o caminho da salvação, só nós sabemos viver da forma “correta”, o que é uma grande mentira. Os rumos que a igreja tem tomado atualmente, com tantos escândalos e desvios, só prova o quanto estamos errados.
Quando Jesus nos incentivou a levar a boa nova do Evangelho a toda e qualquer criatura, não disse para fazermos isso à força, até porque Ele nunca forçou ninguém a aceitá-Lo. Jesus sempre respeitou a dignidade humana, sempre deu às pessoas o seu devido valor, ainda que para toda a sociedade elas fossem marginalizadas. Em sua revelação no Apocalipse de João, Ele disse: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele, comigo.” (Ap 3:20) Não há imposições, Jesus só entra se O deixarem entrar. Mas como podem deixá-Lo entrar se o portador da Sua mensagem traz consigo uma postura agressiva e autoritária? É assim que a igreja tem levado a mensagem do Evangelho para as tribos indígenas, como se fosse um prenúncio de morte, e não de vida.
Evangelismo não é imposição. Os missionários e missionárias não são pessoas superiores que chegam para ensinar aos povos atrasados uma forma correta de viver e de crer. É possível fazer missões respeitando a cultura das comunidades, preservando suas tradições e sua forma de organização social. É possível fazer missões de forma humana e digna, levando a palavra de Deus como uma opção, algo que as pessoas aceitam se quiserem, porque foi assim que Jesus nos ensinou. E quem não quiser não pode ser punido nem demonizado por isso, não pode ter sua cultura criminalizada. Esse é um grande desafio que temos que encarar. Não podemos esquecer que quem julga e salva as pessoas não somos nós, é Deus. Estamos tentando trocar de lugar com Ele, o que obviamente tem sido desastroso!
Neste Dia do Índio, precisamos lembrar às igrejas que índio também é gente, também foi criado por Deus e merece respeito. Ajudaríamos muito mais se, ao invés de nos preocuparmos em acabar com suas tradições para impor uma lógica judaico-cristã totalmente estranha a eles, usássemos nosso dinheiro, nossa visibilidade, nosso poder e nossa mão-de-obra missionária para amplificar as lutas indígenas pela demarcação de terras, por saúde e educação de qualidade e por respeito às suas tradições. Esse, sim, seria o melhor testemunho que poderíamos dar a eles e a forma mais eficiente de mostrar-lhes a luz de Cristo.
2 Comentários
Parabéns e força que a luta é Grande.
Que bom que ainda encontramos pessoas cristãs que não perderam a humanidade Haja Luz nestes dias de trevas, onde a maioria dos crentes estão mais preocupados com o celeiro do que as almas. Parabéns irmã, pelo iniciativa e que amor de Cristo enche os corações para vermos a essência do evangelho iluminar o mundo.