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Caso Flordelis: cobertura machista?

Foto: Jornal de Brasília


Eu demorei pra escrever sobre esse caso aqui no blog porque confesso que fiquei horrorizada. Não surpreende, mas choca. Além disso, li tantos textos e comentários brilhantes nas redes sociais sobre o assunto que achei que não faria nada melhor.

Mas resolvi escrever sobre um aspecto que atravessa esse caso e que eu tenho visto ser levantado por algumas pessoas dos círculos feministas cristãos nos quais estou inserida: o machismo na cobertura do crime cometido pela deputada Flordelis. Acusam a imprensa e as lideranças mais progressistas de serem implacáveis no repúdio, nas críticas e na crucificação de uma mulher, ressaltando que se o mesmo crime fosse cometido por um pastor, não teríamos tamanha repercussão e rapidamente o caso seria esquecido. Será?

Eu, particularmente, não consigo enxergar a questão de gênero como sendo central no julgamento público que Flordelis vem sofrendo. Tenho acompanhado esse caso desde o início e, de tudo que tenho lido, assistido e ouvido, não é o fato dela ser mulher que tem pesado, mas sim a natureza do crime bárbaro que cometeu sob a proteção de um manto de santidade.

No jornalismo, existem os chamados critérios de noticiabilidade, que ajudam o jornalista a definir se o fato é relevante ou não para virar uma matéria. Dentre esses critérios estão o inusitado, o incomum, o inesperado e, claro, o chocante (no qual podemos encaixar os crimes). Em qualquer lugar do mundo, independente do sexo, é chocante saber que uma pessoa planejou friamente a morte do seu cônjuge e, depois de várias tentativas, conseguiu executar seu plano de uma forma brutal, com mais de 30 tiros, e ainda envolvendo filhos adotivos do casal. Eu como jornalista posso afirmar que esse enredo, por si só, é digno de matéria de capa em qualquer veículo. Some-se a isso o fato de a pessoa que planejou o crime ser uma líder religiosa conhecida nacionalmente, que ganhou notoriedade pelo seu perfil materno e caridoso que a levou a adotar 51 filhos, e que também tinha uma carreira artística e política de prestígio. Aí entra o fator inusitado, algo que surpreende por não ser exatamente aquilo que é esperado. Pronto, tem-se a receita para um belo banquete jornalístico, que fisga a atenção da maioria das pessoas e tem potencial para virar assunto de conversa em todas as rodas, independente da classe social ou do nível de instrução.

Pode-se dizer que o caso Flordelis é um prato cheio pra imprensa: ele mobiliza a audiência, deixa as pessoas curiosas por saber mais informações e seu enredo favorece muitos desdobramentos, que podem virar matérias paralelas. O fato de Flordelis ser uma personalidade notória no meio religioso superdimensiona o caso, pois como já expliquei, é a adição do elemento inusitado – nunca se espera que uma liderança religiosa cometa um crime. Obviamente, se o mesmo crime fosse cometido por uma pessoa comum, sem fama e sem dinheiro, o caso repercutiria um pouco menos, pois a notoriedade de quem protagoniza a notícia também é um critério de noticiabilidade que a coloca como mais ou menos relevante.  Logo, tecnicamente falando, não acho que o tratamento que a imprensa dispensou e tem dispensado ao caso seja algo fora do padrão, ao contrário: está totalmente dentro do que se espera a partir dos critérios que se usa pra definir o que é ou não notícia.

Mas não quero falar apenas como jornalista, quero falar também como mulher crente e militante feminista. O caso Flordelis é mais um que expõe a fragilidade do meio evangélico, que deixa escancarada a nossa incompetência em discernir os falsos profetas e o nosso eterno flerte com a glória e o reconhecimento deste mundo. Foi um caso que mostrou, mais uma vez, que a igreja é o lugar perfeito para abrigar pessoas mal intencionadas, que usam a palavra de Deus e os fieis para alcançar seus objetivos de fama, poder e dinheiro. Foi isso o que deixou as pessoas horrorizadas. Uma mulher que, aos olhos da maioria, ocupava um lugar irrepreensível de mãe caridosa de 55 filhos, pastora zelosa, cantora gospel fervorosa e deputada atuante na representação dos evangélicos jamais poderia cometer um ato criminoso desses. Mas cometeu, contrariando todas as expectativas. Apesar de não ter sido a primeira e nem a última, nos chocamos com essa história pela incoerência entre o que Flordelis dizia e aparentava ser o que ela de fato era. A hipocrisia é um elemento que chama a atenção nesse enredo.

Portanto, não foi o fato dela ser mulher que ensejou toda a repercussão do caso, mas sim o fato dela ser uma líder religiosa de grande expressividade. Essa história macabra, na minha opinião, figura ao lado de outras que envolviam líderes religiosos homens e que tiveram igual ou maior repercussão, como o caso João de Deus. A atenção da imprensa, a mobilização das pessoas, a revolta gerada e a enxurrada de críticas foram diretamente proporcionais à visibilidade e ao poder que Flordelis tinha no país inteiro. Para que esse caso repercutisse menos, ela precisaria ser menos famosa, e não um homem. Se ao invés dela o criminoso fosse um pastor reconhecido nacionalmente, acredito que o tratamento dado ao caso seria o mesmo.

Precisamos tomar cuidado com as leituras que fazemos envolvendo questões de gênero, porque nem tudo é gênero. Enquanto militante feminista, sei que somos oprimidas em todos os aspectos da nossa vida pelo machismo estrutural, compreendo a questão do julgamento diferenciado pra nós, mulheres, mas existem situações em que o machismo não é preponderante. Na minha opinião, o caso Flordelis é um exemplo disso. E nós precisamos ficar atentas para não passar a mão na cabeça de pessoas criminosas nem diminuir a gravidade dos seus atos só por elas serem mulheres. Não vamos cair nessa armadilha.

O mais importante neste momento é fazermos uma reflexão autocrítica para entendermos o porquê de casos como esses serem recorrentes no meio evangélico. Minha pergunta é: quando vamos aprender a não mais servir de escada para esse tipo de gente?




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